"Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando". Clarice Lispector

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

"Escritores criativos e devaneios"


Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, EUA, 2011)


Filme de Woody Allen. Com: Owen Wilson, Rachel McAdams, Kathy Bates, Marion Cotillard, Adrien Brody, Carla Bruni, Yves Heck, Tom Hiddleston, Adrien de Van, Corey Stoll, Alison Pill, Marcial Di Fonzo Bo, David Lowe.

Freud dizia que “o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une”. Ao invés de uma temporalidade contínua – passado, em seguida o presente e posteriormente o futuro – temos uma descontinuidade, ou seja, uma situação motivadora que despertou o desejo no presente retrocede a uma experiência anterior do passado, onde esse desejo fora realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. E assim viajamos no tempo! Disso, podemos concluir que sem desejo não há futuro.

Em “Meia-noite em Paris”, Woody Allen leva a idéia de viagem no tempo às últimas conseqüências! Ele nos conta a história de um roteirista, Gil Pender (na interpretação irretocável de Owen Wilson), que está disposto a largar tudo (leia-se a vida segura e acomodada de roteirista de sucesso em Hollywood) para realizar seu grande sonho: escrever um romance em Paris.

Em seu caminho, Gil encontra alguns de seus heróis das artes: Scott Fitzgerald, em sua problemática parceria amorosa e artística com Zelda Fitzgerald; Cole Porter e sua música encantadora; Ernest Hemingway de um jeito que faz crer no que Gertrude Stein afirmou sobre ele: “Mas que grande livro daria a verdadeira história de Hemingway, não as que ele escreve, mas as confissões do verdadeiro Ernest Hemingway”; Salvador Dalí, numa interpretação impagável de Adrien Brody; Luis Buñuel – numa bela composição de personagem por Adrien de Van, apresentando o olhar de assombro diante do mundo daquele jovem cineasta, como podemos observar na cena em que questiona Gil a propósito de sua sugestão para filmar aquele que seria O Anjo Exterminador.

Temos ainda, Gertrud Stein (vivida de forma cuidadosa e doce por Kathy Bates), como catalisadora de toda aquela efervescência criativa. Caberá a ela ser a primeira leitora do romance de Gil, tanto o livro quanto a relação amorosa. Pablo Picasso também aparece, de forma passional. A lista inclui ainda: Henri Matisse, Man Ray, Joséphine Baker, Paul Gauguin, T.S. Eliot, Henri de Toulouse-Lautrec.

Na primeira volta ao passado de seus sonhos, Gil entra numa festa, acompanhado pelo casal Fitzgerald, e encontra Cole Porter ao piano tocando Let’s do It. Simplesmente lindo! Dá para se sentir fazendo parte daquele "sonho"! A música de Cole Porter será o fio condutor capaz de fazer Gil reencontrar seu presente: a possibilidade de amar, através do encontro com uma moça que trabalhava em uma loja de antiguidades. O passado aparece nos mínimos detalhes, fica por ali, rondando e encantando Gil.

Hemingway fala para Gil que, para amar e escrever, é preciso não ter medo da morte. Ao final, ele não só escreve o romance, como consegue viver um romance. Ele já não tinha mais tanto medo da morte, ou dito de outra forma, não tinha medo de seu desejo, de mudar e iniciar uma nova vida, mais condizente com seu desejo, em outro lugar. Assim, Gil pode finalmente vislumbrar o futuro. Final feliz, tempo bom com céu azul? Não, sujeito a chuvas e trovoadas! Todavia, Gil pode se arriscar na chuva e sentir a beleza que também há nela.

Você, leitor, gostaria de ter vivido nesta época? Não se preocupe, ainda é possível conhecer todos esses incríveis artistas. Eles, através de sua obra, são imortais! Para quem ficou com um gostinho de quero mais, recomendo a leitura de Autobiografia de Alice B. Toklas de Gertrude Stein, onde ela nos convida a entrar em sua casa na Rue de Fleurus nº 27 Paris, ponto de encontro com Hemingway, Fitzgerald, Ezra Pound, Jean Cocteau, Juan Gris, Picasso e Matisse, entre outros.

sábado, 29 de janeiro de 2011

A origem dos sonhos


A Origem (Inception, EUA, 2010)

Dirigido e escrito por Christopher Nolan: Leonardo DiCaprio, Ken Watanabe, Joseph Gordon-Levitt, Cillian Murphy, Marion Cotillard, Tom Hardy, Ellen Page, Michael Caine, Dileep Rao, Tom Berenger.



Vendo a imperdível exposição “O mundo mágico de Escher” no CCBB-RJ, tive vontade de comentar o maravilhoso filme de Christopher Nolan “A Origem”. Tem tudo a ver! Não por acaso, o diretor partiu do quadro “Relatividade” de Escher para montar um mosaico cinematográfico, no qual o sonho impera. Se naquele quadro, a cada ponto de vista, muda a percepção da situação, bagunçando incrivelmente as leis da física, neste filme sentimos a mesma vertigem! A trama tem como mote a idéia de manipulação dos sonhos quando pessoas dividem o mesmo espaço onírico, dando-lhes a oportunidade de acessar o inconsciente de alguém.

Dom Cobb é um ladrão de sonhos, especializado em extrair segredos das mentes de suas vítimas. Porém é desafiado a inserir, plantar uma idéia na cabeça de uma pessoa, o que ele aceita não sem hesitar, pois sabe que uma idéia é o parasita mais resistente e é altamente contagiosa. Quando ela ganha força no cérebro é quase impossível erradicá-la. Cresce a partir de pequenas sementes, ou te define ou te destrói. Vemos os dois exemplos no filme: como uma idéia inserida na mente de Fischer, o alvo da equipe, acabou definindo sua vida; por outro lado, a idéia de que este mundo não é real, acabou destruindo Mal, o amor de Cobb.

“Você está tão seguro do teu mundo? Acha que isto é real”? Pergunta Mal para Cobb. O que é real? O que é sonho? Até onde podemos confiar em nossa percepção do mundo a nossa volta? Escher “brincou” com estes conceitos aproximando a realidade do sonho de tal maneira que é quase impossível distingui-los. Na verdade, é esta mesma a intenção! Nolan a seguiu à risca. No filme, a equipe têm alguns truques para fazer seu teste de realidade. Podemos ler “A origem” do título em português como: “Você se lembra do início do sonho?” Não e aí está uma forma de diferenciar sonho e realidade, além do totem que cada um da equipe utiliza.

Veja “Metamorfose II” do Escher, como do caos pode nascer a harmonia. Abelhas que viram pássaros e peixes, pássaros que se transformam numa cidade, a qual em seguida vira um tabuleiro de xadrez. Lembra uma sessão de psicanálise, onde aparentemente algo que não tem nada a ver se liga a outro significante que vai dar sentido ao dito anterior. Só na aparência que nada tem a ver, mas basta um olhar mais atento para descobrir o que os une. Eis a arquitetura de um sonho! Portanto não estranhe se achar o filme um pouco confuso, sem sentido. Os sonhos são assim, mas apenas aparentemente. E é como um sonho que este filme deve ser visto. Nolan, assim como Escher, consegue a incrível proeza de nos fazer sonhar.

sábado, 4 de dezembro de 2010

O inimigo agora é outro mesmo!

Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro (Tropa de Elite 2, BRA, 2010)

Dirigido por José Padilha, com roteiro de Bráulio Mantovani. Com: Wagner Moura, Irandhir Santos, André Ramiro, Milhem Cortaz, Seu Jorge, Tainá Müller, André Mattos, Bruno D’Elia, Maria Ribeiro, Pedro Van Held, Sandro Rocha.


Permissão, Senhor leitor, para falar do tão comentado “Tropa de Elite 2”, filme que conta a jornada do agora, Coronel Nascimento, em sua luta contra os inimigos do BOPE – Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Diferentemente do primeiro filme, neste podemos ver melhor o sujeito Roberto Nascimento, não aquele policial que mata bandidos sem pestanejar, mas aquele que coloca em questão porque tem que fazer isso. Daí o motivo da pergunta de seu filho, ainda reverberando em sua mente: pai, porque sua profissão é matar? Embora ainda não tenha resposta para esta indagação, sua busca é incessante.

Do início ao fim, podemos observar questionamentos importantes a propósito da própria estrutura em que se assenta a polícia militar. Por exemplo, a questão da hierarquia. Sim, de certa forma, ela faz parte da vida. O problema não está na hierarquia, mas no abuso que se faz dela, justificando todo e qualquer tipo de perversidade em seu nome. Nesse quesito o Major Rocha é pródigo – policial militar acaba liderando milícias no bairro do Tanque, sonhando com uma expansão por toda a zona oeste.

Outra questão diz respeito a um dos pilares do militarismo: a disciplina. Na operação realizada em Bangu 2, o Capitão Matias (inferior hierárquico) fica inicialmente dividido entre obedecer às ordens de seu superior, o Coronel Nascimento, e o manual do BOPE, no qual aprendeu a agir de forma enérgica diante de situações como essa. O Capitão decide então seguir aquilo que aprendera no Batalhão e inicia um banho de sangue que lembra o massacre do “Carandiru”. Neste momento entra em cena o contraponto que faltava a Nascimento no primeiro filme, o deputado Fraga, ativista dos Direitos Humanos. Neste conflito, quem sai ganhando é o espectador que, ao contrário do Capitão, deve se colocar a pensar.

A consequência de tal ato é a perda do comando do BOPE para Nascimento. Mas como ele mesmo afirma, quando cai, ele cai pra cima: é promovido a Subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Sua frustração ao se dar conta de que esta Secretaria na verdade não se presta ao papel de assegurar a proteção dos cidadãos é comovente. Esta cena é emblemática da complexidade da questão da violência. A partir daí, Nascimento começa a perceber que o buraco é bem mais embaixo. Até então ele idealizava o aparato de segurança, como foi apresentado no Tropa 1, onde havia declaradamente dois lados: o bem, representado pela polícia, e o mal, representado pelos traficantes. Agora, torna-se capaz de perceber que entre os dois extremos há muitas nuances que não podem deixar de ser levadas em conta. Nomeia isto como “o sistema”. Seu questionamento chega ao ápice de afirmar que a PM do Rio tem que acabar. De alguma forma, após tal situação a PM morreu simbolicamente para Nascimento.

Nestes dias de terror ao vivo no Rio de Janeiro o que mais me impactou não foram as cenas exibidas na mídia, com todos seus maniqueístas excessos e seu poder voyeur de capturar as pessoas, mas uma que pude presenciar: vi uma senhora que trabalha em um centro cultural, ao ver pela TV o criminoso Zeu ser preso, gritando histericamente: “mata, mata esse desgraçado!” Será que não era o caso de se parar um pouco e se colocar em questão como o fez Nascimento? Permissão para me retirar...

domingo, 2 de maio de 2010

Quem é Alice?

Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, EUA, 2010)


Dirigido por Tim Burton, com roteiro de Linda Woolverton, baseado no livro de Lewis Carroll. Com: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Anne Hathaway, Helena Bonham Carter, Matt Lucas, Crispin Glover, Marton Csokas, e as vozes de: Alan Rickman, Christopher Lee, Stephen Fry, Timothy Spall, Michael Sheen, Barbara Windsor, Michael Gough e Imelda Staunton.

“Quem é você”? Pergunta dirigida à Alice é o fio condutor do excelente “Alice no País das Maravilhas”. Sim, é a Alice de Lewis Carroll, o mestre do nonsense que nos brindou com uma história realmente maravilhosa, mas ela é vista pelo olhar de Tim Burton, o cineasta que consegue enxergar o mundo com estranhamento, tornando as coisas mais banais, incríveis. Foi um feliz encontro!

Fugindo de um noivado arranjado e das imposições da sociedade de sua época, Alice segue novamente o Coelho Branco e cai no mundo subterrâneo – O 3D realmente deu a sensação de nos transportar para o País das Maravilhas. Caímos no buraco junto com Alice! – dominado pela terrível Rainha Vermelha que não se cansa de ordenar: “Cortem-lhe a cabeça”. Lá descobre que deverá derrotar o temível Jaguadarte[1] a fim de restabelecer o reinado da querida Rainha Branca. No fantástico País das Maravilhas ela reencontra o encantador Gato de Cheshire, os gêmeos Tweedledee e Tweedledum, a enlouquecida Lebre de Março, o Chapeleiro Maluco... mas senti falta do mestre Humpty Dumpty!

A heroína original era uma menina de 10 anos, inspirada em Alice Liddell, por quem Carroll nutria grande afeição. No filme, Alice não é mais criança – a personagem tem 19 anos – mas seu principal conflito ainda é o da identidade. Diante da pergunta da Lagarta Absolem: “Quem é você”, ela responde simplesmente: “Alice”. Ao contrário da menina que dizia não saber ao certo, uma vez que tinha mudado muito desde a queda no País das Maravilhas. Mais velha, mostra uma faceta frágil e impotente, pois havia se esquecido como era ser Alice, com sua grandiosidade e impetuosidade.

Alice tem sonhos recorrentes com o País das Maravilhas, angustia-se e teme enlouquecer. Pergunta ao pai se está ficando louca e ele responde: “Sim, você está louca. Mas vou te contar um segredo. As melhores pessoas são”. São eles que denunciam o absurdo da vida. Se no livro, o Chapeleiro afirma com satisfação que lá, no País das Maravilhas, todos são loucos, aqui ele pergunta com pesar se está enlouquecendo, ao que a jovem afirma da mesma forma que seu pai um dia lhe respondeu, sem temer, pois ela acredita que as melhores pessoas são os loucos.

É de arrepiar quando o Chapeleiro declama o poema Jaguadarte de Lewis Carroll: “Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos”. Ele fala a Alice que é sobre ela, conta a história de seu triunfo sobre o temível Jaguadarte. Alice resiste, diz que não matará, está confusa sobre quem é de verdade. Ora se sente pequena, impotente, acreditando que não conseguirá acabar com o mostro, Ora se sente grande e acredita em coisa impossíveis. O Chapeleiro não a reconhece mais, afirma que a menina Alice de antes era grandiosa.

A questão é: “Quem é você?”, como deixa bem claro a Lagarta para Alice. A jovem encontra a si mesma no underground, como canta Avril Lavigne na música tema da personagem. Esta questão faz Alice pensar e é só quando ela consegue assumir sua responsabilidade como sujeito que consegue finalmente enfrentar o terrível Jaguadarte, cortando-lhe a cabeça. Com o passar do tempo, vemos Alice realmente crescer, tornar-se mais corajosa e determinada. Aqui já não é a menina que pergunta assustada para o Gato de Cheshire: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” Ela afirma sua posição de sujeito: “Eu crio o caminho!” A transformação porque passa Absolem, de lagarta a borboleta, é um belo espelho das mudanças atravessadas por Alice. Ao vê-lo no casulo, prestes a se transformar em borboleta, a jovem consegue recuperar a Alice perdida, nomeando-se Alice Kingsley. Ela aprende que é preciso acreditar em coisas impossíveis, pois só assim elas se tornam possíveis e assim consegue cumprir sua missão.

“Por que um corvo se parece com uma escrivaninha?” é o enigma proposto pelo Chapeleiro Maluco à Alice, mas o maior de todos é “Quem é Alice?” Talvez nunca respondamos a essa pergunta, mesmo porque qualquer resposta não daria conta do enigma insolúvel existencial de cada sujeito.

[1] Tradução de Jabberwacky de Lewis Carroll por Augusto de Campos.

domingo, 24 de janeiro de 2010

À procura de um lugar no desejo do outro

A menina no País das Maravilhas (Phoebe in Wonderland, EUA, 2008) 


Dirigido e escrito por Daniel Barnz. Com Felicity Huffman, Elle Fanning, Patricia Clarkson, Bill Pullman, Bailee Madison, Campbell Scott, Ian Colletti, Caitlin Sanchez, Mackenzie Milone, Austin Williams.

Enquanto a Alice de Tim Burton não chega, falemos do lindo filme sobre uma menina que encontra na personagem Alice de Lewis Carroll um lugar no desejo da mãe. Logo no início do filme, vemos a festa de aniversário de Phoebe e seu encantamento diante de uma maquete do País das Maravilhas, presente de seus pais. Sua mãe havia escolhido Alice no País das Maravilhas como tema para escrever um livro, a partir de sua Dissertação, mas não consegue terminá-lo. Em seguida, acompanhamos os desaniversários da menina.

A entrada em cena da professora de teatro é no mínimo, instigante. Ela faz sua irrupção declamando um dos mais belos exemplos do nonsense carrolliano Jabberwocky: “´Twas brillig, and the slithy toves / Did gyre and gimble in the wable: / All mimsy were the borogoves, / And the mome raths outgrabe”[1]. As crianças ficam mesmerizadas! Quando Alice escuta isso, relutantemente acha difícil de entender, mas afirma que este poema encheu sua cabeça de idéias. O mesmo aconteceu com Phoebe! A professora, com o poema, conseguiu imprimir na aluna um certo estranhamento. Phoebe inscreve-se para atuar na peça “Alice no País das Maravilhas”, pois acredita que sua mãe ficaria feliz por ela incorporar Alice e assim seria mais amada por ela.

A professora de teatro não diz aos alunos o que eles devem fazer, pede a eles que digam. Embora saiba como fazer, ela não disse aos alunos como fazer, repetindo, da mesma forma que um cozinheiro, os ingredientes de uma receita de bolo. Ela não se colocou como modelo, ao contrário, permitiu que os alunos se colocassem como sujeitos responsáveis pelo processo que passavam, transmitindo-lhes confiança.
Encontrar uma brecha onde seja possível dar um lugar para se encontrar. Após lutar contra suas resistências, Phoebe escolhe ser Alice e faz o teste para esse papel de maneira primorosa (Elle Fanning consegue passar no difícil teste e nos passar o peso da sensibilidade daqueles que são tocados pelo estranho, construíndo uma doce Alice). Ela carrega as palavras com muita intensidade, deixando-nos perceber que não se trata de pura encenação, por exemplo quando inicia a peça: “Como as coisas estão estranhas hoje. Deixe-me pensar. Eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é, quem sou eu?” Eis sua interrogação existencial!

Phoebe se sentia como Alice no País das Maravilhas, completamente perdida, sem controle sobre seu corpo – o qual, lhe obrigava a movimentos involuntários, como lavar várias vezes as mãos – ou sua fala, levando-lhe a repetir frases e palavras que escutava, sem conseguir parar. Mas, eis que surge o Gato! A professora representa este papel para a menina. Uma das passagens mais incríveis dessa obra é quando Alice, ao saber que o Chapeleiro e a Lebre de Março são loucos, diz para o Gato que não quer se meter com gente louca. Ao que o Gato responde: “Oh, é inevitável! Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca”. É como se o Gato autorizasse Alice a também ser louca como os habitantes do País das Maravilhas e assim a menina pudesse continuar caminhando, sentindo-se menos estranha naquele lugar, ao dar-se conta de que ela também tinha um lado “maluco”. Na peça, Phoebe se sente menos diferente das outras crianças, pois pôde perceber que não havia nada nela que não fizesse parte do humano e assim como Alice começou a encarar uma dolorosa e comovente jornada como sujeito, que não é efeito da biologia, mas sim afetado pelos significantes que o cercam. E assim Phoebe continuou caminhando.

[1] “Solumbrava, e os lubriciosos touvos / Em vertigiros persondavam as verdentes; / Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos / E os porverdidos estriguilavam fientes”. Fonte: CARROL, Lewis. Alice: Edição Comentada. Ilustrações originais, John Tenniel; introdução e notas, Martin Gardner; tradução, Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Falando em ‘perdidos’ não dá para não falar de "Lost"

Preparação para o início do fim...





Há cinco anos ia ao ar uma série televisiva absolutamente singular, daquelas que poderão um dia nos fazer dizer para as próximas gerações: no início desse milênio, uns caras escreveram aquela que seria a melhor série de todos os tempos! Estou falando de Lost, série criada em 2004 por Jeffrey Lieber, J. J. Abrams e Damon Lindelof, que conta a história dos sobreviventes do vôo 815 da Oceanic Air em uma ilha do Pacífico. Os personagens encontram-se perdidos, condição necessária para encontrar a si mesmo. A série é centrada na jornada de cada um dos losties – os sobreviventes que se perderam na ilha – e nas relações estabelecidas com os nativos desse lugar, chamados de 'Outros', em referência a famosa frase de J. P. Sartre: "l’enfer, c’est les autres[1]".

Estou certa de que cada fã desta série terá um motivo para amá-la ou até mesmo odiá-la. Se para uns, seus mistérios são o ponto forte: o “monstro” representado pela fumaça preta, os “Outros”, os “números maus”, a razão da queda do avião com a sobrevivência de vários passageiros e as viagens no tempo. Para outros, é o que faz com que se afastem, achando “sem pé nem cabeça” ou “muito cabeça”. Mas não é isso que me faz escrever aqui! O que me toca é a relação estabelecida entre cada personagem – sua vida passada (mostrada através de flashback), o presente na ilha e o futuro (que aparece nos flashforward) – e os eventos decorrentes da convivência com os demais personagens. Cada fio vivido do tempo compõe uma intrincada peça determinante para as escolhas de cada um deles.

Se a princípio parecia que o objetivo almejado pelos losties era voltar para casa, quando isso ocorreu vimos o contrário da idéia de Dorothy de que não há lugar como o nosso lar, porque mais do que sair da ilha, encontrando uma saída de volta para a casa, interessa ficar e sustentar estar nesse lugar que os colocam diante do encontro com algo do qual eles não podem fugir: eles próprios. Só assim podem realizar a travessia de volta para casa. Lost caminha para sua última temporada e o embate entre destino e livre arbítrio coloca mais uma vez o sujeito no centro da questão, mais do que isso, coloca o próprio telespectador para questionar a série e também se colocar nessa berlinda. Isso não é pouco para uma série de televisão! Faço algo porque sou destinado a fazer ou escolho isso? De um lado, a luz representada por Jacob e sua aposta de que o homem é livre para fazer suas escolhas e de outro, no lado negro, seu irmão que acredita no destino e que o homem é essencialmente mau. Quem vencerá? Resta aguardar pelo grand finale!

[1] “o inferno são os outros”.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Durante e depois da vida...

Depois da vida (Wandafuru Raifu, Japão, 1998)

Escrito e dirigido por Hirokazu Kore-eda. Com: Arata, Erika Oda, Susumu Terajima, Takashi Naito, Kei Tani, Toru Yuri, Hisako Hara, Akio Yokoyama, Kazuko Shirakawa, Yusuke Iseya, Sayaka Yoshino, Kyoko Kagawa.

E se você, caro leitor, tivesse que escolher uma única recordação, a mais marcante de sua vida, aquela que você levaria por toda a eternidade? Esse é o mote do incrível “Depois da Vida”, do japonês Kore-eda. É um belo filme que trata da jornada pela qual todos os seres humanos passam – nascer, crescer e morrer – indo mais além disso, apresentando o que acontece depois que a vida termina. Numa espécie de "repartição pública", algumas pessoas trabalham, sendo este trabalho algo como uma preparação para aqueles que acabaram de morrer. Os mortos são informados de que precisam escolher uma recordação sua, uma lembrança de algo que tenha sido bastante significativo, para eternizá-la. Eles têm um tempo limite, três dias, findo os quais, os "funcionários da repartição” farão o melhor possível para recriar esse momento em um filme, ressalvando que este filme pode não combinar exatamente com a lembrança, por isso deve ser usado apenas como referência, uma maneira de voltar ao passado. Com ele, os mortos seguirão adiante, levando somente essa lembrança eternizada num filme. Poética evocação do papel do cinema para as pessoas, funcionando como máquina para sonhar.
Acontece de tudo, há pessoas que não tem o menor problema em escolher uma lembrança, há aquelas que ficam em dúvida, há ainda, as que se recusam a escolher. Vemos uma jovem, como muitas adolescentes, a princípio escolher sua viagem à Disneylândia, mas depois pôde se lembrar do cheiro e da maciez do colo de sua mãe, eternizando este momento em que se sentia tão amada. Observamos também um ex-piloto que quis simplesmente recriar seus momentos de aviador, quando as asas de seu avião recortavam as nuvens que lhe pareciam tufos de algodão doce. Entre aqueles que se negam a escolher um momento está o jovem de 21 anos Iseya. Primeiro, ele se recusa, depois escolhe um sonho, do tipo que sonhamos ao dormir. Em seguida, desiste por não achar tão importante. Também, porque ele fora informado de que não pode escolher algo do futuro, como um sonho, deve escolher algo do passado. Ele questiona, afirma que são apenas lembranças. No fim de tudo, diz ele, acabamos por transformar as lembranças nas nossas próprias imagens, como se fizéssemos um filme e isso que se cria parece mais real do que qualquer lembrança. Isso, segundo Iseya, é muito mais do que olhar para trás, por isso, esse negócio de olhar para o passado, de viver um só momento desse passado seria muito doloroso. Para o jovem, não se trata de não poder escolher um momento, mas sim que ele não quer escolher e ao fazer isso, sente-se assumindo a responsabilidade por sua vida. De qualquer forma, recusar-se a escolher também é uma escolha! Shiori também se recusa, porque terá que esquecer tudo que passou na “repartição”, onde descobre que fez parte da felicidade de alguém e não suportaria ser esquecida novamente. Ela conta que só conseguiu entender isto pelo tempo que passou ali, naquele local, com aquelas pessoas que lhe acolheram e das quais ela não quer esquecer.
É interessante notar que ao se lembrar de um momento e fazer um filme sobre isso, eles estão realmente criando suas lembranças, não o que realmente aconteceu de fato, mas o que marcou subjetivamente o sujeito em cada uma delas. Aqueles que não puderam escolher ficam trabalhando na “repartição”, são os responsáveis por receber os recém-mortos. Ironicamente, terão o trabalho de fazê-los se lembrar de um momento de suas vidas. E se durante a vida você seguisse levando apenas uma lembrança marcante? Em muitos casos, a vida já é pontuada por um único momento do qual não se consegue sair, como canta Bono Vox na bela Stuck in a moment You can't get out of: “You've got stuck in a moment and you can't get out of it”[1]. Cada sujeito tem uma cena marcante que irá moldar sua vida, mas é um problema quando ela se torna fixa demais, aprisionando-o. Uma possível saída de tal prisão é aquela relacionada à criação, assumindo a responsabilidade por suas escolhas e assim tornando-se capaz de recriar a cena, não totalmente, mas a alteração de um único detalhe já é capaz de mudar todo o jogo de cena, necessário para seguir em frente.

[1] "Você ficou presa a um momento e não consegue sair dele".